6- Preciso vê-la

Estava com tanta curiosidade a respeito da filha do treinador que quando parei para pensar melhor sobre isso me senti um idiota.

Afinal, porque queria vê-la? Não tinha nem a intenção de falar com ela. A procura e espera que tive o dia inteiro me fez sentir cada vez mais idiota.

Precisava encontrar algum hobby... Meu desespero para me libertar do tédio estava me levando a fazer coisas estranhas.

Passei o fim de semana procurando algo para melhorar o meu humor.

Sempre vejo o Jack com algum livro ou ouvindo música, então pensei que não morreria por tentar.

Não fui capaz de passar da primeira página de um livro, acordei umas duas horas depois.

Música não parecia ajudar muito, me deixava ainda mais ansioso.

O meu sábado foi uma chatice sem tamanho, tentei até estudar, mas o meu presente foi uma ‘adorável’ dor de cabeça.

No domingo, uma idéia que não era das melhores, surgiu e eu resolvi dar atenção a minha idiotice.

Ir até a casa do treinador... Por um momento até fiquei com medo de mim. Estava me tornando um obcecado exemplar.

Seria mais fácil se, ao menos, soubesse onde o treinador morava. Lembrei de uma vez em que ele comentou que morava perto do Parque Primavera.

Então não vou morrer se procurar, também moro perto do parque.

Lá estava eu, dando voltas e mais voltas pelas ruas próximas ao parque. O pior é que provavelmente passei pela casa dele sem que soubesse.

Não aconteceria o milagre dele aparecer na porta de sua casa no exato momento em que eu passasse por ela.

Eu também não estava tão louco ao ponto de bater de porta em porta... Não estava?!

Bem, não precisava ser em todas, apenas uma ou outra para ter alguma direção... A família do treinador era nova na cidade, os vizinhos devem ter notado.

Estava tão irritado de ter andado tanto, não podia, simplesmente, voltar para casa sem tentar um pouco mais. Toquei a campainha da porta mais próxima à entrada principal do Parque Primavera.

Atendeu uma empregada, fiquei feliz, assim não precisaria dar muitas explicações vergonhosas.

“Bom dia, senhor. Com quem deseja falar?”

“Bom dia... Na verdade, só gostaria de fazer uma pergunta para a senhora mesma.”, não sei se poderia estar mais envergonhado.

Não sou nem de longe do tipo tímido, mas com aquela minha procura sem sentido estava completamente embaraçado.

“Oh! Então pode fazer...”

“Bem, a senhora notaria se alguma nova família se mudasse para essa vizinhança, não é mesmo?!”, a pergunta não era retórica, mas ela entendeu que sim e não respondeu, esperava a continuação da minha pergunta. Então levei seu silêncio como um sim.

“Então... Soube de alguma, recentemente?”

“Jovem, eu tenho muito serviço para fazer. Posso não ter empresas pra tomar conta, mas nem por isso sou à toa. Não fico futricando a vida alheia! Muito me admira um jovem, como você, perturbar os outros com esses desaforos. Vá estudar!”, ela estava ofendida e estava para bater a porta na minha cara. Eu segurei a porta.

“Me desculpa, mas não tive a intenção de ofender a senhora. Posso imaginar que atrapalho os seus serviços, mas é que estou mesmo interessado na sua resposta. Estou procurando uma família que se mudou recentemente para cá, mas não sei o endereço exato.”, a explicação que pensei que não fosse precisar dar.

“Sei... Bem, teve uma família, que chegou esse mês mesmo. Moram no final da rua.”, ela disse, mantendo o tom irritado, e terminou de fechar a porta.

Fui até onde ela me indicou vagamente. “Final da rua”, essa não era a melhor resposta... Teria que me arriscar mais uma vez a errar a casa, mais constrangimento.

Achei melhor tentar a última casa. Toquei a campainha da casa.

Apareceu uma jovem. Parecia ter em torno de vinte anos de idade.
“Olá, mocinho!”, ela me obeservou por um segundo. Antes que eu pudesse responder ela continuou.

“Parece cansado, entre. Vou pegar algo para você beber. Prefere água ou suco?”, ela entrava na casa enquanto dizia, deixando a porta aberta.

Sumiu, antes mesmo que eu pudesse dizer qualquer coisa.

Entrei, mesmo receoso. Tanta hospitalidade chegava a ser suspeita.

A sala tinha uma aparência engraçada; lembrava uma casa de boneca.

Sentei-me num das cadeiras.

Minha vista passou por um quadro que ficava no meio da sala. Era de uma menininha, ela me lembrava alguém, mas não forcei a memória, afinal, meu objetivo naquela casa era outro.

A moça voltou carregando uma bandeja onde tinha um copo de água e outro de suco.

“Não sabia o que queria, então trouxe os dois. Assim você pode ficar mais a vontade. Pode beber... Não tenha pressa. Quando estiver se sentindo melhor, pode falar.”, ela falava como se fosse uma mãe cuidado de um filho mimado.

Apesar do conselho, bebi às pressas, não queria perder muito tempo.

Percebi que estava com mais sede do que pensava; bebi os dois copos que me ofereceu.

“Muito obrigado, foi muito gentil da sua parte.”, precisava agradecer uma pessoa tão prestativa.

“Oh! Disponha. Se desejar mais alguma coisa não se contenha.”

“Na verdade só tem uma coisa que gostaria. Uma ajuda, nada demais, só uma direção.”, senti-me mais à vontade de perguntar dessa vez. Ela tinha uma expressão agradável.

“Pode perguntar.”, sempre com um sorriso.

“Estou procurando por uma família que se mudou recentemente para essa rua. Vasconcello, conhece?”, a minha pergunta fez o sorriso dela se tornar uma leve risada.

“Muito bem. Então devo informar que encontrou o que procurava.”

“Oh...”, por aquela eu não esperava. Mas não podia negar o meu contentamento.

“É algum amigo de minha filha?”

“Filha??”, não podia estar menos assustado. Seria ela esposa do treinador? Não era possível. Não se a filha dela fosse aquela menina que vi no outro dia. Devo Ter entendido alguma coisa errada...

“Sim, a Mariana. Ela está com o pai lá embaixo. Treinando, como sempre.”

“Mas... Vocês tem mais de uma filha?”

“Não... Algum problema? Não parece bem.”

“Não, não. Só que a senhora parece tão jovem...”, não contive a minha surpresa.

“Ah! Que nada! Tenho trinta e dois anos, só que engravidei da Mariana cedo... Tinha dezesseis anos. Não fique surpreso.”, ela contava como se tivesse feito uma pergunta que sempre a faziam, como ‘qual é o seu nome?’.

Ela estava saindo. Larguei os meus pensamentos de lado e me apressei a dizer.

“Não é com a sua filha que vim falar. Sou um dos alunos do Colégio Elite e o senhor Vasconcello é meu treinador.”, ela podia ser simpática e gentil, mas o seu esposo não ficaria tão contente em saber que estava lá para ver a filha dele.

“Ah, bem... Então, vou chamá-lo.”, ela saiu da sala.

Não tardou e ela voltou com o treinador.

“É o garoto Scott...”, o treinador falava com a esposa.

Quanta diferença; enquanto a Sra. Vasconcello tinha uma presença agradável e suave, o Sr. Vasconcello tinha a postura de um tirano, daquelas que se dissesse que me sentia confortável faria de mim algum tipo de masoquista.

“Treinador...", disse como uma forma de cumprimento.

“Então, rapaz, o que faz você aqui?”. Uma ótima pergunta. A prática em mentir me deixava cada vez mais hábil em situações que exigiam de mim respostas rápidas, não me orgulhava disso, mas não podia deixar de me aproveitar dessa habilidade.

“Pensei nos conselhos que o senhor deu durante as suas aulas; sobre que deveríamos nos esforçar mais durante os treinos e praticar sempre que possível. ‘Quanto mais treino, melhor.’, foi esta frase dita pelo senhor que me trouxe até aqui.”, saiu com tanta facilidade que soou como verdade até para mim.

O treinador não foi capaz de esconder a felicidade que sentiu, abriu um breve sorriso, mas tentou se fazer parecer sério novamente. Ele deve ter ficado orgulhoso em ouvir que seus conselhos tinham sido ouvido.

“Deveria ter vindo com roupas mais apropriadas... Mora muito longe?”. Eu realmente não estava com roupas adequadas para morrer treinando.

“Não, moro logo atrás do parque. Vou me trocar. Fiquei tão empolgado em treinar com o senhor que não prestei atenção no que vestia.”, as minhas mentiras deslavadas e exageradas pareciam deixá-lo feliz.

“Então vá logo. Vou ficar te esperando aqui mesmo.”, mas nem assim ele ficava mais amável.

Saí e fui me trocar. Quando cheguei em casa, pensei várias vezes se deveria voltar mesmo. Não tinha visto a garota e nada indicava que a veria. Parecia que o meu tédio só estava me levando para um longo treino cansativo e desnecessário.

Cheguei a pensar em boas desculpas para dar ao treinador na segunda-feira, por não ter ido ao tal treino de Domingo.

Mas, apesar, de toda a minha falta de vontade, fui. Fiquei preso na pequena possibilidade que existia de vê-la. Mesmo que isso não acontecesse, seria melhor do que a rotina irritante que seria a outra alternativa.

Ao chegar, o treinador já estava do lado de fora da casa. Realmente, não vi a tal criatura que me levou a toda aquela bagunça.

Nós fomos até a o Parque Primavera e lá ele me fez fazer todo tipo de exercício imaginável.

Tentei conversar algumas vezes, todas frustradas. Ele era muito exigente com isso de treinar. As conversas que tivemos se resumiam a ele me ordenando o que fazer e eu dizendo ‘Sim, senhor!’.

Terminamos quando a esposa dele apareceu.
“Querido, já está na hora do almoço. Vamos almoçar, depois você continua.”, ela foi a minha salvação. Não podia estar mais feliz.

“Reservei um espaço para você conosco, espero que não se incomode.”, ela disse para mim. O treinador parecia indiferente com a minha resposta, então não vi mal em aceitar. Almoço, provavelmente, a talzinha apareceria.

A mãe da garota invisível insistiu umas milhões de vezes para que eu tomasse um banho na casa deles, antes de almoçar. Eu recusei todas as vezes. Eu queria muito um banho, mas não gostei da idéia de fazer isso na casa de ‘estranhos’, fora que colocar a mesma roupa suja não era nada tentador.

Quando o almoço foi servido não vi a Mariana.

“A filha de vocês não vem almoçar também?”

“Eu tentei fazer com que ela viesse, mas ela teimou que almoçaria mais tarde. Disse que quer treinar mais. Na verdade, acho que está com vergonha de você. Sei que não tem motivos, mas ela é bastante tímida. Mas não sinta-se mal por isso, quando ela tiver fome, comerá.”

Aquilo já estava me irritando. Ela teria vergonha mesmo num simples almoço? Estava quase morrendo para ver uma garota que fazia de tudo para não ser vista, que ‘felicidade’ a minha. Comi irritado.

“Não nos apresentamos corretamente... Meu nome é Myrian... Aposto que não conhece o do meu marido, também; ele sempre dá apenas o sobrenome para os alunos. É Lucas Vasconcello. Mas evite de chamá-lo assim, ele acha que diminui a autoridade dele...”, ela confessava, mas só quando o treinador saiu da mesa.

Ela saiu logo depois de terminar de falar.

Ficar sozinho ali me dava forças para colocar em prática minhas idéias idiotas. Estava a ponto de procurar a garota pela casa...

... Quando o pai da mesma voltou. “Eu diria para treinarmos mais agora, mas você, realmente, precisa de um banho. Se não quer tomar banho aqui, então tome na sua casa. Você terá mais forças assim.”, ele nem me deu a alternativa de não treinar mais por hoje. ‘Que ótimo!’

Fui para casa e tomei um longo banho.

Joguei-me na cama e juro que teria ficado lá se não tivesse sido interrompido.

“O senhor Vasconcelos está te aguardando na sala, Scott.”, a empregada disse do outro lado da porta.

Fui obrigado a deixar o meu lugar de descanso e ir até o treinador. Ele disse que foi até a minha casa porque demorei muito. Esse era o meu prêmio por ser um ‘aluno interessado’.

Ficamos até o entardecer. Juro que até aquele momento fiquei torcendo para que o treinador se machucasse, era a única forma que achava possível para ele parar.